terça-feira, 19 de abril de 2011

Filme "A Cidade dos Mortos" (2010/11) - de Sérgio Tréfaut

25.03.2011

No documentário "A Cidade dos Mortos", de Sérgio Tréfaut, uma mulher egípcia, de olhar triste e viúvo, diz que tem que se tirar sabedoria do sítio onde se vive, sobretudo quando esse sítio é num cemitério, no Cairo.


"A Cidade dos Mortos", que estreou no dia 14 em Portugal (sem previsão de estréia no Brasil), revela o quotidiano em vários cemitérios no Cairo, onde vivos e mortos partilham um mesmo espaço, crianças e adultos dormem em túmulos onde estão enterradas pessoas que não conhecem.

É como se fossem cidades dentro do Cairo, com estradas, ruas e becos, mercados, escolas, oficinas, com roupa estendida entre lápides, crianças a jogar à bola ao lado de jazigos.

Fonte

15.04.2011

Padarias, escolas, teatros de fantoches, vendedores ambulantes, disputas entre vizinhos, hábeis casamenteiras. O quotidiano de uma aldeia como tantas outras narrada pela voz de um coveiro. Estamos no Cairo, na Cidade dos Mortos, onde um milhão de pessoas partilham a cama e a mesa com túmulos. A história levou a melhor no Documenta Madrid 2010, está a caminho da lendária Biblioteca de Alexandria e acaba de chegar às salas portuguesas, depois da apresentação no Indie Lisboa. Nela, é a vida toda quem silencia este cemitério, sereno e intrigante.


Não nos mostra um único funeral neste cemitério cheio de vida.

A morte não é ver um cadáver a apodrecer; o problema está na relação que temos com aqueles que já não estão connosco. O que gosto mais, passado algum tempo, é a questão da espiritualidade, que não é óbvia. O que transmito no filme é um amor das pessoa pelas pessoas, um carinho pela vida, e não mais que isso. Acho maravilhoso que aqueles habitantes que têm um contacto diário com a morte e com aquilo que está na origem das fraudes acerca da perda da espiritualidade e da religião tenham uma visão tão serena do universo que causa a fraude. Lidam com a morte muito frente a frente com a vida.

Como foi recebido nesta cidade?

Há todo o lado do Estado que é muito complicado. É um filme clandestino, que nunca obteria permissão para ser filmado. Qualquer pessoa que ponha uma câmara na rua do Cairo precisa de autorização. Não houve suborno, de modo algum, mas tínhamos uma conversa amena quando nos abordavam. Essa proibição de rodagem tem consequências nas próprias pessoas. Filmei apenas as que me autorizaram, com quem dialoguei bastante tempo e compreenderam o meu propósito. Têm uma enorme consciência dos abusos que são feitos pelas televisões em fazer daquilo um antro de miséria.

Não a viu como tal?

Não é uma coisa terrível. No Cairo, logo ali ao lado, há o bairro dos habitantes do lixo. Depois tem outros bairros construídos sem condições, com prédios inacabados, onde morria imensa gente. A Cidade dos Mortos tem uma qualidade de vida muito superior. Acontece de tudo, é divertido e desmistificador por isso.

Como fez a ponte com essas pessoas? Aprendeu árabe?

Comecei por aprender árabe. Não chega, leva muito tempo. Cheguei ao Cairo pela primeira vez em Novembro de 2004 e fiz várias viagens até começar a filmar em Agosto de 2007. Tentei relacionar-me por vários caminhos. São vários cemitérios e redes enormes. Almocei e jantei em casa daquelas pessoas que entram no filme.

Chegou a dormir no cemitério?

Dormi uma noite numa casa. Convidaram-me, mas era complicado para elas. Uma jornalista italiana fez daquilo um caso extraordinário porque transformou um túmulo num bed&breakfast. Foi para Itália e quando voltou chegou à fronteira e não entrou mais. Dentro do período do Mubarack não se podia brincar com o fogo. Havia locais onde podíamos ficar e outros não. Depois disseram-me que era melhor ficar no hotel e assim fiz, mas comia e vivia todos os dias lá.

Gostou da experiência?

Totalmente. Sinceramente se tivesse que escolher um lugar para morar no Cairo era aqui, não tenho a menor dúvida. As pessoas são simpáticas, tem vida. Os meus amigos no Cairo estão lá.

Eles já viram o filme?

Vão vê-lo proximamente. Vou ao Cairo nos próximos meses fazer uma apresentação. O que acontece ao passar o filme no Egipto, e a Al Jazeera pede-mo há muito tempo, é que há uma parte que não quero passar na televisão porque fiz um compromisso com eles. Depois de verem talvez autorizem.

Qual é a cena?

A dos rapazes no carro. Não sei se os pais, as mães e as namoradas vão achar muita graça àquela conversa. É um pouco de mais. Tirando isso, já foi convidado para ser apresentado na grande biblioteca de Alexandria.

Pediu-lhes que fossem espontâneos?

Tudo é uma mistura de construir e espontâneo. Neste caso queria filmá-los no carro. Eles deram voltas ao cemitério e ia uma câmara atrás. Eu nem estava no carro. As conversas dele são o mais autêntico possível. Tal como a conversa da casamenteira, é o mais genuíno possível.

Como chega a esta história?

Já se fez muita reportagem mas eu não conhecia, tal como muita gente. Um amigo azucrinou-me para lá ir. Também achava tão esquisito que pedi para me explicar melhor. Peguei no avião e fui. Quando acordei no hotel na primeira manhã estava a 500 metros do cemitério. É muito intrigante, visualmente não se compreende que é um cemitério, é como uma aldeia. Ser intrigante é um desafio.

Saiu-lhe muito dinheiro do bolso?

Do bolso salvo seja, porque felizmente sou produtor também e consigo articular as coisas. Não ganhei dinheiro, e os documentaristas não ganham dinheiro, é muito árduo, mas sobrevive-se. O orçamento total deve rondar os 150 mil euros, feita com muitas equipas e várias viagens. A última vez estive lá três meses. Gerir 70 a 80 horas de material pede muitas horas de montagem.

Tem retratado muito os fenómenos da imigração. Aqui não deixa de filmar um certo espírito ambulante.

Talvez. Há o lado da história, um certo cinema antropológico. Muitos vão fazer filmes sabe-se lá onde, como Joris Ivens, um dos meus mestres. Há pessoas que são capazes de experimentar isso sem aprender a língua ou sem perder muito tempo, e fazem filmes muito bons, não estou a fazer crítica nenhuma. Mas eu não sou capaz. Preciso de mergulhar naquele universo e criar relações com as pessoas. Existiu essa cumplicidade que levou muito tempo e custou muito.

Teve problemas depois da conclusão?

Não. O Egipto é um país onde tudo pode ser e tudo não pode ser. Para mim é importante mostrar lá o filme porque gostava que possibilitasse uma quase reconciliação catártica. Ultrapassando o tabu de viver com os mortos, por decisão de Nasser, quando as cidades do Mar Vermelho foram bombardeadas, abrindo esse precedente, os milhares chegaram ao milhão. Os números variam entre os 700 mil e 1,7 milhões de habitantes.

Depois do Cairo, em breve apresenta uma ficção, que se chamava "Business" e entretanto mudou de nome.

A longa-metragem que vai ser apresentada a 8 de Maio no Indie Lisboa chama-se "Viagem a Portugal". É um frente-a-frente entre a Maria de Medeiros e a Isabel Ruth, um duelo de dois monstros. É muito linear, com a história de 24 horas num aeroporto, barragem de fronteira. É formalmente muito radical, a preto e branco, quase experimental. Mostra vontade de contar de forma diferente e participar numa discussão política, que não diz só respeito a Portugal.

É uma ficção que nunca perde de vista a âncora do documentário?

A ficção é inspirada numa história real, da minha professora de russo. Mais do que fronteiras entre ficção e documentário, permite-me pensar o nosso mundo, a realidade presente, e as coisas que nos estão vedadas. Em Portugal todo o aparelho de poder exerce uma proibição enorme sobre o conhecimento do seu funcionamento. Por um lado somos herdeiros de uma tradição do Bordallo Pinheiro que caricaturava o D. Carlos como nenhum outro país fazia, mas mostrar a verdade não deixam. Com paródia faz-se quase tudo, mostrando como as coisas são, o silêncio pesa. Quando filmei o "Lisboetas" nunca consegui filmar uma série de coisas.

No Cairo trabalhou clandestinamente. Arriscaria fazer algo parecido em Portugal para levar algo avante?

No Cairo não autorizam e faz-se. Aqui não se entra facilmente em muita coisa. Quando o "Lisboetas" saiu fui convocado pelo SEF para uma sessão de branqueamento. Os poucos minutos que se mostram no SEF levaram meses a conseguir autorização, e queriam que fôssemos filmar os ingleses, franceses. Não queríamos isso. Diziam que estávamos a perturbar os pobres coitados que lá estavam, proibiram-nos de filmar os funcionários. Depois já podia filmar onde quisesse. Então pedi-lhes para me autorizarem a filmar nos locais onde se fazem os interrogatórios nos aeroportos. Nunca recebi resposta.

Continua a achar que o documentário está reservado ao espaço da memória?

Há dificuldades a nível das autorizações e dos financiamentos. A televisão quer um arquivo morto, não quer retratar a realidade contemporânea, reflectir o nosso mundo. Há uns anos tive um projecto que apresentei ao Jorge Weimans. O filme seria 15 dias com Alberto João Jardim, que vende no mundo inteiro, como Berlusconi. "Ah, nem pensar nisso". O ICA e a Gulbenkian também incentivam a criatividade mas preocupam-se muito mais em fazer um arquivo morto. Uma vez queriam que fizesse uma série de filmes sobre artistas. Eu pago para que não façam. Os artistas têm galerias, eles que se desemerdem a fazer os seus filmes.

Fonte