O Poder Público pretendia utilizar-se dos terrenos do velho campo santo, a fim de fazer ali crescer alguns edifícios. Ameaçava destruir o Cemitério da Soledade, pondo abaixo seus mausoléus, onde repousam distintos paraenses que ajudaram no engrandecimento da história do Pará. Homens de uma raça hercúlea, quase divina, que desbravaram a selvagem e praticamente impenetrável floresta amazônica, naquele ano de 1963 estavam ameaçados pelos que os sucederam. Os belos monumentos que lhes davam o justo repouso, reduzidos a nada em nome de um progresso cego e dissociado de expressão cultural.
O presente artigo foi um dos responsáveis pelo movimento de preservação do antigo Cemitério que, logo a seguir, menos de um mês depois, em 23 de janeiro de 1964, foi finalmente tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendeo preservado da cobiça inescrupulosa.
Embora o artigo tenha por base o problema de sua então possível extinção, não deixa de ter sua importância sob análise histórico-artística, o que me fez trazê-lo novamente à luz para os admiradores da arte sepucral de outrora. Acrescento a ele algumas imagens que fiz recentemente, em janeiro de 2006, 42 anos depois de seu tombamento."
Carlos Eduardo de Almeida Barata
Valor Urbanístico - Por Mário Barata - Crítico e historiador de arte, jornalista, professor e escritor. Secretário geral da AICA, professor da EMBRA e do curso do Museu Histórico Nacional, de 1952 a 1962. É autor de dezenas de monografias, ensaios e textos de apresentação. Vice-Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
"Uma cidade que cresce não se pode dar ao luxo criminoso de despersonalizar-se, destruindo os valores que a caracterizam. Entre os resultados do bom trabalho de administrar do passado, dando nota inconfundível à paisagem urbana de Belém do Pará, está o cemitério da Soledade, em quadra arborizada com palmeiras e árvores da terra e ainda as "mangueiras de cemitério", a que se refere liricamente Eneida no seu Banho de Cheiro, com a face principal dando para a larga e ensolarada avenida Serzedêlo Corrêa. Talvez nenhuma outra cidade do Brasil possua uma área urbana de antigo cemitério desafetado, com tal qualidade e tão específico como elemento artístico paisagístico. Quando bárbaros iconoclastas pensam hoje na própria Belém do Pará, em destruir o tradicional cemitério a fim de substituí-Io por edificações residenciais, cumpre levantar viva voz para protegê-lo e salvá-lo dêsses ímpetos comercialistas, desprovidos de compreensão e de amor pela cidade e do respeito aos mortos.
Belo pela sua implantação de verde, pelos gradis externos de ferro, pelo traçado neo-clássico das muradas de sua área central com estátuas de cerâmica e alguns túmulos-capela do mesmo estilo, com os nomes e os despojos das famílias tradicionais do Grão-Pará: fazendeiros de Marajó, comerciantes, militares, políticos, estudiosos. E os remanescentes dos túmulos rasos de azulejos, que a avidez dos colecionadores atuais dessas cerâmicas está cada vez mais arrancando ao abandono do local. E necrópole importante também pelo lado sociólogo, sobretudo no momento em que Gilberto Freyre conclui a sua Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil com o anunciado Jazigos e Cevas Rosas (sepultamento e comemoração dos mortos no Brasil - patriarcal e semi-patriarcal).
Percy Lau, ao fazer, neste 1963, o mapa Pitoresco e Resumido da Cidade de Belém do Grão Pará - possivelmente sob indicações de Tocantins e inserto no bom lucro sobre a capital paraense dêste autor, coloca entre as poucas coisas ali anotadas como sugestão aos turistas, o Soledade e, em sua frente, o cemitério dos Ingleses. Realmente, aos visitantes interessam aos valores paisagísticos e históricos daquela quadra verde que quebra, respeitosa e espiritualmente, mas também de modo estético, a repetição de casas dos quarteirões fronteiros ou vizinhos, já imaginados profeticamente pela insaciabilidade vampiresca dos especuladores, como áreas de futuros arranhacéus de apartamentos. Só a consciência pública - espiritual e artística -, poderá deter mais uma vez espontâneamente, os resultados das ofertas e lentações do "vil mental", no caso da preservação do cemitério da Soledade, cuja proposta de tombamento estou renovando neste mês, à Diretoria do Património Histórico e Artístico Nacional, acompanhando e ampliando, ante fatos novos, a antiga formulação de 1948, feita por Ernesto Cruz.
No décimo quinto capítulo do Santa Maria de Belém do Grão Pará, Leandro Tocantins ressalta, por duas vêzes, os magníficos gradis do "Soledade", vindos, ao que parece, da Inglaterra, em meados do século passado, gradis cuja largueza de ritmo e valor plástico são levemente indicados pelo desenho de Lau. Realmente com as suas bases de pedra oitocentista e as pilastras laterais, afirmam valor de beleza.
Estudioso da categoria de Arthur Vianna, considerado recentemente por Artur C. F. Reis como um dos quatro maiores historiadores do Pará, desde fins do século passado, dedicou atenção ao "Soledade", em sua monografia A Santa Casa de Misericórdia Paraense / Notícia Histórica / 1650-1902, editado em Belém nesse último ano. Por ali se sabe que o local do cemitério e o seu início foram estabelecidos pelo notável presidente conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, em 1850, durante grande epidemia de febre amarela, no meio de restrições surgidas das classes mais ricas da cidade, habituais às inumações nas igrejas.
Só em 1874 nascera a necrópole de Santa Isabel, cujas obras de muramento externo e gradis foram orçados então, a pedido da Santa Casa, pelo engenheiro Antônio Manuel Gonçalves Tocantins - também estudioso da geografia paraense e autor, entre outros trabalhos, de uma viagem ao Trombetas.
Portaria de 5 de agôsto de 1880, do presidente da Província, dr. José Coelho da Gama e Abreu, Barão de Marajó - geógrafo e historiador - suspendia os enterramentos no Nossa Senhora da Soledade, visto que a análise de terreno, misto de argila e areia, revelava-o, sob diversos aspectos, impróprio ao fim nobre a que o destinavam até então.
Portaria de 5 de agôsto de 1880, do presidente da Província, dr. José Coelho da Gama e Abreu, Barão de Marajó - geógrafo e historiador - suspendia os enterramentos no Nossa Senhora da Soledade, visto que a análise de terreno, misto de argila e areia, revelava-o, sob diversos aspectos, impróprio ao fim nobre a que o destinavam até então.
O estudioso que reuniu, todavia, maior documentação sôbre a necrópole foi já citado Ernesto Cruz, que se baseou em códices manuscritos da Biblioteca e Arquivo Público do Pará e em livros de assentamentos do Cemitério. Intitulou-se o seu trabalho, terminando ao que parece em abril de 1946 e ao que tudo indica ainda inédito, de O Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, enviando-o datilografado e acompanhado de fotografias, à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em cujo arquivo se encontra.. Documenta, o mesmo, póstigo em cantaria que foi projetada pelo artista Pezerat, de formação neo-clássica, que trabalhou no Rio de Janeiro - na antiga Escola Central (hoje de Engenharia) e na Quinta da Boa Vista- sendo essa prova de sua atividade no extremo norte do país importante e curiosa para a História da Arte do nosso período imperial. E também apresenta a sóbria e elegante capela néo-clássica, com sineira separada, posterior, em largo arco, no qual elementos de sobrevivência formal barrôco-pombalina se ajustam a uma base bem clássica.
Isolado pelas quatro faces, o "Soledade", incluindo pequenos campos santos de Ordens Terceiras, é área urbanísticamente significativa, na capital paraense.
Divulgarei a seguir informações a respeito do tradicional cemitério fundamentando-me essencialmente no referido trabalho de meu amigo Ernesto Cruz.
Em dezembro de 1850, já estando a Provincia sob nova administração, do Presidente Fausto Augusto de Aguiar, o cemitério passou à propriedade da Santa Casa, com a obrigação desta pagar à Câmara de Belém o fôro anual de cem réis por braça de frente que tivesse o ter reno.
Da construção da Soledade foi inicialmente encarregado o capitão Joaquim Vitorino de Sousa Cabral, cujos restos mortais nêle repousam.
O pórtico e o gradeamento do Soledade foram feitos por projeto do engenheiro-arquiteto Pezerat, tendo sido a parte de cantaria executada em Portugal em pedra de lióz.
A 28 de janeiro de 1853, fôra firmado contrato entre a Mesa Administrativa da Santa Casa, e o construtor Joaquim Maria Osório, da cidade de Lisboa. representado no ato pelo cidadão Francisco Antônio Fernandes, .para o fornecimento dêsse material. Vieram 400 pedras e o portão de ferro, tendo sido aquela "lavada" com ferramentas reais fina nos enfeites e nas guarnições. O gradeamento de ferro encomendado na Inglaterra, por intermédio da firma Singlehurst, Muller & Cia, de Belém, veio pelas barcas "PRINCESS ROYAL" e "EMILY" chegados a 8 de julho e 19 de setembro de 1853.
O pórtico e o gradeamento do Soledade foram feitos por projeto do engenheiro-arquiteto Pezerat, tendo sido a parte de cantaria executada em Portugal em pedra de lióz.
A 28 de janeiro de 1853, fôra firmado contrato entre a Mesa Administrativa da Santa Casa, e o construtor Joaquim Maria Osório, da cidade de Lisboa. representado no ato pelo cidadão Francisco Antônio Fernandes, .para o fornecimento dêsse material. Vieram 400 pedras e o portão de ferro, tendo sido aquela "lavada" com ferramentas reais fina nos enfeites e nas guarnições. O gradeamento de ferro encomendado na Inglaterra, por intermédio da firma Singlehurst, Muller & Cia, de Belém, veio pelas barcas "PRINCESS ROYAL" e "EMILY" chegados a 8 de julho e 19 de setembro de 1853.
Em 1854 eram inaugurados os melhoramentos.
Ainda segundo Ernesto Cruz, entre os monumentos funerários mais importantes ou dígnos de interêsse, no "Soledade" podem citar-se:
I - o jazigo do major Gaspar Leitão da Cunha, pai do presidente da Provícia do Pará, Ambrósio Leitão da Cunha;
II - o de Vicente Antônio de Miranda, comendador da Ordem de Cristo e Oficial da Imperial Ordem da. Rosa, que deixou um vultoso legado à Santa Casa de Misericórdia do Pará, com o qual foi possível a construção do pórtico e do gradeamento da Soledade;
III - o monumento onde estão as cinzas do general Hilário Maximiliano Antunes Gurjão, herói da ponte de Itororó. Foi construido nas oficinas de Lombardi em Bréscia. O trabalho de escultura foi feito pelo professor Allegretri do Insttuto de Belas Artes de Roma.
IV - O túmulo do capitão de mar e guerra José Joaquim da Silva;
V - o do cônego Siqueira Mendes;
VI - o de Manoel Coelho de Souza e outros jazigos como os das famílias Chermont, Barata, Antônio Teodorico da Silva Pena, Visconde de Arari, Joaquim Marcelino Rosa, Joaquim Roberto da Silva e a sepultura de azulejos portuguêses de Raimunda Chermont Picanço, que é tida como milagrosa.
II - o de Vicente Antônio de Miranda, comendador da Ordem de Cristo e Oficial da Imperial Ordem da. Rosa, que deixou um vultoso legado à Santa Casa de Misericórdia do Pará, com o qual foi possível a construção do pórtico e do gradeamento da Soledade;
III - o monumento onde estão as cinzas do general Hilário Maximiliano Antunes Gurjão, herói da ponte de Itororó. Foi construido nas oficinas de Lombardi em Bréscia. O trabalho de escultura foi feito pelo professor Allegretri do Insttuto de Belas Artes de Roma.
IV - O túmulo do capitão de mar e guerra José Joaquim da Silva;
V - o do cônego Siqueira Mendes;
VI - o de Manoel Coelho de Souza e outros jazigos como os das famílias Chermont, Barata, Antônio Teodorico da Silva Pena, Visconde de Arari, Joaquim Marcelino Rosa, Joaquim Roberto da Silva e a sepultura de azulejos portuguêses de Raimunda Chermont Picanço, que é tida como milagrosa.
Com o início da República deu-se a secularização dos cemitérios - aliás sem indenização à Santa Casa Paraense dos capitais ali empregados, ao lado dos da Província. Um termo de entrega em 1891 das citadas necrópoles belenenses, autorizadas aos 17 de outubro de 1890, vem reproduzido na íntegra no livro de Arthur Vianna. Ali se relacionam as alfaias e imagens de capela da Soledade. Achar-se-ão ainda no local?
O representante da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional propusera, como vimos no início de 1948, as inscrições em Livro do Tombo, do tradicional cemitério.
O representante da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional propusera, como vimos no início de 1948, as inscrições em Livro do Tombo, do tradicional cemitério.
Passados mais de 15 anos, circunstâncias novas deram maior realce às importância dessa necrópole - sobretudo no plano urbanístico-paisagístico, -relativamente à cidade de Belém, que ora se transforma com rapidez nêsse particular e no de sua arquitetura em geral.
O fato do cemitério haver funcionado somente durante cêrca de 30 anos lhe confere especial unidade de concepção e de realização de valores arquitetônicos e escultóricos que ampliam o seu sentido espiritual e histórico.
O fato do cemitério haver funcionado somente durante cêrca de 30 anos lhe confere especial unidade de concepção e de realização de valores arquitetônicos e escultóricos que ampliam o seu sentido espiritual e histórico.
Situado dois quarteirões por detrás do largo da Pólvora (hoje Praça da República) êle se acha em zona residencial ainda, baixa, mas perto do centro. Fornece à cidade um elemento de meados do século passado dígno de perservação para as gerações futuras, por êsse caráter urbanístico-paisagistico, além dos motivos anteriormente considerados.
Cumpre ao povo de Belém - do Pará, do país inteiro - lutar pela preservação do antigo cemitério. Entre tantos erros urbanísticos dos últimos anos - na sêde cega de dinheiro, que caracteriza os homens de hoje - não se cometa mais êste. Que a Serzedêlo Corrêa e suas travessas, ao alcance do largo da Pólvora, tenham o seu velho cemitério, a mostrar um pouco da antiga Belém, da grande Belém de outras épocas, com o respeito devido aos ancestrais e ao passado."
Fonte: História das Cidades - http://www.hcgallery.com.br/cemiterio_1.htm